Friday, June 09, 2006
Fiquei ali parada, imóvel, a olhar para o espaço:
cor de rosa, 3 beliches, 5 mulheres, algumas a dormir (ou a fingir que dormiam …para não ouvirem mais histórias, mais desgraças pois bastavam as suas …).
A rapariga que se tinha levantado estava também parada a olhar para mim e uma outra levantou a cabeça, com ar estremunhado e ficou também a olhar.
As lágrimas caíam-me silenciosamente pela cara abaixo.
Uma outra, virou-se no beliche, olhou para mim e balbuciou- estás a ressacar? – respondi, baixinho, - que é isso?.
Olharam-me as três, com ar sonolento e incrédulo, e uma perguntou, - estás cá por droga? – respondi – acho que sim, não sei bem ...
A segunda rapariga, que me olhava com ar estremunhado, levantou-se e com prontidão baixou-se para debaixo da cama, puxou um caixote de cartão e à medida que mexia no caixote dizia, - olha, tens aqui lençóis para a cama… estes são meus … a cadeia não tem nada para ninguém … cuecas, pijama, toalha de banho ... – e ia-me atirando gentilmente as coisas, e continuava - ... é meu mas está tudo lavadinho e na~tenho doenças... só não tenho almofada ... aí atrás de ti tens o duche, podes utilizar o gel de banho ... fica à vontade, colega.
Colega!? Que termo tão estranho! Não o ouvia há anos e anos … e também não tinha andado com ela na escola !
Lá dentro fui-me despindo, sempre com as teimosas lágrimas a escorregarem pela cara abaixo e ouvi as duas raparigas a conversarem.
Uma dizia, - dá aí os lençóis que eu faço-lhe a cama ... daqui a pouco abrem as portas, e não dormimos nada.
Outra balbuciava, - Pá, falem baixo. Daqui a pouco vou trabalhar e quero dormir. Os embrulhos são sempre para esta cela ... - .
Agradeci e subi com o maior cuidado. Ainda a vi subir com agilidade para a sua cama, agilidade esta que, compreendi depois, se ganha com muitos anos de prática.
Fecharam a luz e tudo voltou ao silêncio doentio, mortal, pesado. Ali fiquei acordada, com as lágrimas a correr pela cara abaixo, sem lenço para me assoar, entregue aos meus pensamentos confusos intercalados por orações, embalada pelo som do respirar pesado de cinco mulheres em sono profundo.
Comigo éramos seis mulheres num espaço de quatro metros por quatro. A janela tinha grades e nisto tudo só reparei quando o sol começou a nascer. Uma estridente sirene ouviu-se, com eco. As raparigas começaram a levantar-se e aí sim vi-lhes a cara a todas. Olhavam para cima , para mim, com ar desconfiado mas ao mesmo tempo descontraído.
Eram quase sete horas da manhã.
A rapariga que me tinha emprestado o pijama disse-me, - bom dia, dormiste bem colega?- respondi, - não consegui dormir ....-, ela continuou, - é normal, estás nervosa ... queres telefonar para casa ?
Quando abrirem as portas, às sete e um quarto, vou lá abaixo buscar o pequeno almoço e peço à guarda para te deixar telefonar, está bem? Aqui é com cartão .... A rapariga ágil, enquanto se arranjava disse, - eu empresto-te o meu cartão para ligares e levo-te ao telefone.
E assim começou o meu primeiro dia de mais de mil e quinhentos dias de prisão, (contados até à data da suposta libertação).
Eram perto das oito horas da manhã quando as duas raparigas chegaram ao quarto, acompanhadas de uma guarda prisional que me disse, - olha, vai lá telefonar à cabine. Elas levam-te depois do conto .
A guarda saiu. Reparei que não era a mesma que me tinha acolhido de madrugada. Perguntei ás raparigas, - o que é o conto ? – responderam-me a rir, - São as guardas que nos vêm contar a todas, para verem se nenhuma fugiu ... fazem isto quatro vezes ao dia ... Quando toca a sirene vens para a porta da cela senão levas participação ....
Perante o meu semblante, de boca aberta, sorriram novamente e disseram, - deixa lá, com o tempo habituas-te . Ainda lhes disse, - ... eu quero ir para casa, não sei o que estou aqui a fazer ...
A senhora mais velha, de etnia cigana ,que pouco ou nada tinha falado disse com convicção, - ... vais para casa sim senhor, se Deus quiser ... nenhuma de nós nasceu aqui ... assim como entrámos temos que sair um dia!
Disfarçaram a conversa .
Um saiu e voltou com três bicas em copo de plástico.
Soube-me bem este café acompanhado do cigarro que me restava.
A estrondosa e irritante sirene voltou a tocar e a guarda do novo turno apareceu à porta, muito compenetrada, a fazer contas de cabeça – como quem conta cabeças de gado.
Uma das raparigas, conforme se movia rapidamente dizia, - anda depressa, corre para sermos as primeiras a chegar ao telefone ... depois é muita confusão e só consegues ligar lá para o meio dia .... (eram oito e um quarto da manhã ...)
Fui atrás dela, abriu-se a porta da cela e saí para o corredor.
1 Comments:
Nita,
Obrigado
São cerca de 8:47, cheguei ao escritório às 8:10, como sempre, depois de deixar as minhas filhas no colégio. Está um dia lindo, daqueles que nos levantam o moral e que nos dão vontade de ouvir música de teenagers, com as trampas da vida para trás das costas, como se não existissem. Hoje estou invencível, vai correr tudo bem.
Chego ao escritório, antes de todos para preparar o meu dia e responder aqueles mails e pendentes que carecem de maior atenção e paz, e numa pesquisa do google tropeço acidentalmente no seu blog.
A enorme curiosidade de remissão para o tema prisão impeliu-me a visitá-lo. Aqui estou eu, a saber que o meu dia vai ficar todo virado ao contrário pelos pendentes que devia ter resolvido nesta meia-hora em que estou sozinho e com a paz que vou perder dentro de minutos, ainda a ler os primeiros capítulos e a fazer um enorme esforço para interromper.
Não sei se é um conto imaginário ou de vida real, mas gostava de saber. Seja como for, são estes testemunhos que enriquecem a nossa vivência e a nossa passagem nesta vida. Fazem-nos pensar, mudam as nossas perspectivas e enriquecem o nosso “intelecto”, se é que o tenho.
Obrigado.
E obrigado por me ter lembrado que como sempre andamos todos muito preocupados com as nossas vidinhas de treta, com os nossos enormes problemas que não passam de umas “merdices”, sem importância nenhuma, e que devíamos era dar Graças a Deus todos os dias por aquilo que temos.
Faça-me um favor. Continue a escrever.
Assino com enorme respeito,
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