Monday, July 03, 2006

Capítulo 1 (parte 7)

- A P.J. já vem a caminho para te levar à TIC - . Nada comentei, voltei a percorrer o pavilhão com a dita companheira e, ao longo do percurso pensava – que guarda tão ignorante … nem sabe falar português … à TIC …? Então se Tribunal é masculino …- .
Com o decorrer do tempo também verifiquei que o português, a gramática, a cultura geral são para esquecer ali por aquelas bandas. Ah! E nem vale a pena chamá-las a atenção sobre os vários pontapés que dão na gramática pois se for uma guarda tomam-nos de ponta imediatamente. Aconteceu-me a mim, claro!
Na cela tomei um duche rápido, vesti a roupa suja e enquanto esperava, as companheiras iam falando comigo, ora uma ora outra, - vai correr tudo bem ... – , - se Deus quiser vais dormir a casa - ... , - tens advogado? Não fales nada sem advogado ... – , - se tiveres o azar de voltar, não te esqueças que estamos cá para te apoiar ...-.
O meu nome soou estridentemente ao microfone e uma das companheiras levou-me outra vez pelo pavilhão até ao gradão de saída. Saída ...hall de entrada, por onde entram as entradas ... sempre a entrarem e sair ? Sair é milagre.
A guarda prisional abriu a porta, uma nesga suficiente para eu passar, e vi dois homens à minha espera (já os tinha visto). Cumprimentei, entrei no carro e seguimos. No caminho até Setúbal iam falando, ora um ora outro...- então , que raio de amigos arranjou ... – agora quando falar com o juiz o melhor é dizer a verdade senão a coisa está má ...,- vão lá estar os seus amiguinhos todos, não pode falar com eles ... e não deve, pode prejudicá-la (coitados, tão preocupados que estavam comigo ...)
Nunca tinha entrado numa sala de tribunal. Nunca me tinha confrontado com o sistema inquisitório o qual pensava que há muito tinha desaparecido.Engano meu.
Aliás hoje em dia vejo que toda a vida estive enganada em relação a muitas coisas mas também sei que não sou só eu. Vocês que ainda me estão a ler, o que agradeço, também estão enganados. O problema é que eu conheci a realidade negra e feia e suja da forma menos agradável.
Depois de estar horas à espera entro numa sala com uma juíza e um delegado do MP, os dois sentados em plano superior, com um semblante de prepotência estampado nas suas fronhas e a Meretísssima, mal olhando para mim, e depois de me ter identificado, diz:
- Então o que é que tem a dizer?
Fiquei atónita a olhar para aquele semblante pois eu é que estava á espera de ouvir as razões concretas que ali me tinham levado qual criminosa da pior espécie.
- Então não ouviu? Tem a dizer alguma coisa? Respondi – Eu não sei o que aqui estou a fazer … Tinha um amigo a dormir lá em casa com dois amigos seus … Já expliquei à polícia que não tenho nenhuma ligação com as suas supostas actividades … Desculpe Srª Drª eu nem sei o que diga … não é melhor perguntar-me o que deseja saber? … é que eu não sei …. Ele é um amigo meu … não conheço as outras pessoas …. Ontem tive que dormir na prisão … porquê, porquê? – continuávam a olhar para mim, o MP bocejava e a Meretíssima, qual Deusa no Olimpo afirma peremptoriamente – eu não tenho que lhe fazer pergunta nenhuma. Pode sair! – e eu saí.
Depois de mais umas longas horas de espera, os polícias levam-me com os outros homens à secretaria, de passagem vi o meu pai, e decretam a minha prisão preventiva. À saída do Tribunal, um dos senhores que havia dormido na minha casa, que eu não conhecia e que mais tarde em julgamento assume o crime de tráfico de droga por todos os outros (tanto quanto me apercebi …), algemado, completamente descontrolado e indignado com os polícias gritava – Dejem la señorita … que se vá para su casa … ela nada tiene con todo esto … solamente allí dormimos porque estabamos com un amigo suyo … non la conocemos de nadie … que non se hace esto …por favor la señorita non … non tiene nada que ver com nuestros negócios .. Ese hombre que hable la verdad, el que conoce la señora … habla coño - . Os polícias tentaram com alguma brutalidade metê-lo no carro. O meu pai e eu estávamos a olhar para tudo como se de um filme se tratásse em que nós não éramos protagonistas. A minha cabeça estava vazia. O meu pai deu-me mil escudos para eu poder sobreviver na prisão até à primeira visita. O tal meu amigo, que ainda não vos disse mas nunva teve a coragem de olhar para mim, de olhos baixos balbuciou – Nita, não tenho nada, nem pasta de dentes nem dinheiro, têm aí para me emprestar? – Olhei para ele ….. um miserável … com ar de quem desceu aos confins de um esgoto … acho que até estava mais pequeno … . Num impulso e com as palavras a baterem-me na cabeça “Amar o próximo como a ti mesmo …” peguei na nota que o meu pai acabava de me dar e dei-lha. Um dos polícias que tinha assistido a tudo arrancou-lhe a nota da mão e disse– Não tens vergonha na cara? O pai da senhora acabou de lhe dar este dinheiro para levar com ela…. Cobarde. Com amigos como tu ela não precisa de inimigos para nada. Já para dentro do carro.
E foi assim que eu comecei a ser infeliz.
Aos quarenta anos de idade conheci a maldade, a podridão da sociedade em que vivemos, conheci marginais, criminosos com crachat e sem crachat, conheci homens e mulheres que se consideram deuses, violam direitos liberdades e garantias de qualquer pessoa, sem o mínimo de remorso, e nunca são punidos ou presos porque são impunes pela Lei, conheci gente recalcada, conheci almas sujas, conheci crimes terríveis cometidos por gente louca verem com alegria a absolvição, conheci toxicodependentes serem condenados com mão pesada como vis criminosos, conheci homicidas, conheci ladrões e conheci gente boa … vitimas de todos nós, do nosso egoísmo, da nossa insensibilidade, da nossa pobreza de espírito.
  • Conheci os amigos.
  • Conheci os conhecidos
  • Conheci a família…
Ganhei novos amigos
Sequei o saco lacrimal
Ganhei um sorriso novo … mais duro talvez.
  • Aprendi quase tudo sobre crime e marginalidade.
  • Aprendi como se rouba … como se furta.
  • Aprendi o que é o tráfico … aprendi tudo sobre droga.
  • Senti na pele o que é a corrupção, na carne o peso da maldade.
Criminosos…???
Há muitos por aí, nem melhores nem piores,
há os com sorte e os sem sorte.
  • Conheci os parvos (sendo eu a maior)
  • Conheci ignorantes com cargos de chefia.
  • Conheci a prepotência … o abuso de poder.
  • Conheci o ódio, a raiva e a vingança.
Senti tudo isto cá dentro,
Senti o meu coração em ferida pelo sofrimento causado à minha família.
Senti a impotência para lutar contra o sistema judicial e político.
Conheci os frouxos.
  • Requentei comida em cima da televisão,
  • Matei centenas de baratas
  • Aliviei muitas vezes o meu sofrimento ao escutar as desgraças alheias.
Vi no sorriso de uma criança a força para encarar mais um dia de prisão e de injustiça
Vi no rosto do meu filho o desespero… a desilusão...,
Marcado para sempre na sua pele, o trauma do meu número de presa.
  • Vi o mergulho dos meus, no mar da desgraça.
  • Suguei a força da minha mãe para viver.
  • Tirei um curso de jardinagem.
  • Fui jardineira de Tires.
Ajudei ao parto da minha cadela “Estrela”(abandonada na cadeia)
Apoiei-me no meu Guarda Prisional …,
encostava a minha cabeça no seu ombro já cansado.
  • Agarrei-me a Deus com todas as forças.
  • As minhas forças eram para as companheiras de Tires,numa luta louca para que nunca mais lá voltassem … mas regressam.
  • Fui sacristã de Tires
  • Que grande capelão tinha Tires … hoje goza de uma reforma bem merecida.
Aprendi a não julgar.
Por detrás de cada pessoa está uma história de vida,
às vezes muito triste.
Prendem-se mães e deixam-se filhos menores na rua ao abandono!
  • Há quem roube para dar alimento aos filhos.
  • Há quem mate para proteger seus filhos de violadores.
  • E há quem roube e quem mate por muito menos e está ao fresco nas ruas de Portugal.
Lutei contra o miserabilismo do regime prisional,
Lutei braço a braço com elas por uma esperança de vida.
Tentei manter os meus princípios e educação … não sei se consegui.
Sinto-me uma delas, na dor e na luta, mas elas não me vêm como tal.
  • Os soberanos fizeram-me sentir como uma criminosa
  • Julgaram-me em praça pública, ofenderam a minha família…
  • Ofenderam-me a mim … rotularam-me de traficante de droga e não me conheciam de lado nenhum.
  • Hoje sou uma criminosa á luz da Lei e do Estado;
Cadastrada,
presa à liberdade condicional,
presa às recordações para o resto da minha vida.
  • Conheci a escória,
  • conheci os advogados,estudei as leis.
  • Apliquei-as, sempre que possível, em benefício das mulheres de Tires.
  • Aprendi a contornar as leis e a viver sem elas.
Porque Lei só há uma,
A da sobrevivência!
(continua ...)

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

É mesmo impressionante este relato. Li um pouco emocionado e solidário com um relato que muda toda uma vida e implicou concerteza um crescimento grande pessoal baseado no sofrimento.

1:11 pm  

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