Wednesday, October 11, 2006
Tuesday, October 10, 2006
Capítulo II (Parte 2)
A primeira visita da família.
Acordei passadas poucas horas já com uns raios de sol a entrarem pelo
xadrez das grades e de repente ouvi aquela sirene estridente, que marcou todos os mais de 1500 dias que ali passei e que marcava a alvorada.
Não sabia se me havia de levantar ou ali ficar prostrada pois todas dormiam … era sábado. O som estrondoso das Guardas a abrirem os ferrolhos das portas das celas fêz-se ouvir com eco pelo Pavilhão inteiro juntamente com o chinelar de pés a correr não sabia eu para onde. As vozes, ouvia-as ao longe – ó colega, quem é a última? …. Eu sou a seguir …. Quem é a última?... A seguir sou eu …
A companheira do pijama, P … reparando que eu estava acordada, disse baixinho: - Nita, vou ao refeitório buscar o pequeno- almoço e vou marcar a vez para o telefone, queres vir? – respondi – Não, obrigada - ela insistiu – mas não queres falar para tua casa? – respondi – quero mas não tenho cartão – respondeu ela: - Eu empresto-te o meu, tem pouco mas dá para as duas. Arranja-te enquanto eu vou buscar o pequeno-almoço que eu marco a nossa vez para o telefone. Daqui a pouco começam as visitas … vais ter visita? – respondi: - não sei … e ela terminou dizendo – Despacha-te porque se não ficarmos no telefone à espera da vez vai haver merda.
Levantei-me. Parecia que tinha levado uma tareia tais eram as dores que tinha no corpo. A pressão, os nervos, o colchão de espuma que me colocou a dormir na tábua, a cabeça vazia, os olhos a arderem com as lágrimas a teimarem em correr sem fim, sem rumo … olhei-me no espelho e vi uma pessoa que não era eu … era a minha assombração.
A P … regressou com dois termos na mão, um saco plástico com pão e pousando tudo em cima da mesa, fazia-me gestos que traduzidos queriam dizer: come e despacha-te.
Bebi uma chávena de café e fomos para o telefone.
O telefone … sempre a mesma confusão. Note-se que é raro o dia em que não há cenas de pancadaria por causa do telefone.
Liguei para a minha mãe, vinham a caminho de Tires … já não via a minha mãe e o meu filho há 3 dias.
Voltámos para o quarto. As outras senhoras já estavam acordadas e começámos a arrumar e a limpar o interior daquele cubículo.
Sentia-me mal, pois estavam todas com olhos em cima de mim, …tiravam-me a vassoura da mão e diziam, ora uma ora outra – deixa lá que eu faço isso … anda, sai daí, eu lavo … não é assim que se faz …´
Ou seja, para elas eu não sabia fazer nada. Elas eram as mais limpas.
No princípio isto tudo incomodava-me mas depois tive que aprender a viver.
Logo, quando diziam – sai, não é assim, eu faço… - eu obedecia e deixáva-as na limpeza.
Tenho que vos passar esta imagem de limpeza geral, ao sábado, dentro de um pavilhão prisional.
Hoje penso que essa imagem tem tudo a ver com a cultura dos bairros.
Eu aprendi a limpar uma casa com a minha avó materna e com a minha mãe de uma forma que considero normal. Nunca na minha vida vi colocar as mobílias e os haveres fora de portas para fazer limpeza, mas está certo, também aprendi esta modalidade na prisão..
Imaginem isto num prédio …
Ali, o estardalhaço da limpeza era impressionante: tiravam tudo para fora da porta, para o corredor, sacos com roupas, cadeiras, mesas, chinelos, colchões … por vezes até os beliches. Depois atiravam-se baldes com água para dentro da cela e esfregava-se com a vassoura. Depois, de joelhos, o chão todo passado a pano.
É certo que este processo arcaico de limpeza, é higiénico num local destes mas é reflexo do que elas fazem nos seus bairros. Também colocam tudo na rua mas aí, em vez de sacos riscados dos chineses como resguardo de roupas, é o frigorífico último modelo, o micro-ondas, os sofás de padrões fortes, os écrans de televisão planos e portas escancaradas a verem-se os candeeiros faustosos de vidrinhos pendurados nos tectos.
Tudo isto para mostrar às vizinhas o nível de vida que conseguiram, na maioria dos casos, fruto do tráfico de droga e roubos vários.
A contracenar com este luxo, cá dentro ou nos seus bairros, está associada a imagem destas mulheres loiras platinadas com raiz preta de 1 centímetro, cabelos esticados tipo vassoura agarrados num puxo com uma mola no alto da cabeça, carregadas de ouro, unhas pintadas, pijama e bibe aos quadradinhos,justo, curto, e chinelos de enfiar o dedo.
Subitamente, as guardas começam histericamente aos gritos no microfone a desfilarem um rosário de nomes para a visita, que tinha lugar no refeitório do Pavilhão. Vim ao corredor para ouvir melhor o que dizim pois a dicção era péssima e vi as mulheres todas produzidas como se fossem para uma festa, com sacos plástico na mão com a roupa que mandam para casa para lavar. A excitação era mais que muita.
Passado um pouco ouvi chamar o meu nome e lá desci para o refeitório.
Uma guarda abriu a porta quando bati, e indicou-me um lugar para me sentar, dizendo –tu sentas-te deste lado e as visitas à tua frente. –
Enquanto esperei, olhei em redor do refeitório apinhado de pessoas, na maioria de etnia cigana, um barulho imenso de conversas cruzadas sobre polícias, droga, advogados e julgamentos.
Quando vi os meus pais, o meu filho, o meu irmão entrarem ia morrendo. Se alguma vez eu pensei, inadvertidamente que fosse, fazê-los passar por este sofrimento e humilhação! Os olhos da minha mãe procuravam-me no meio de toda a gente.
Levantei o braço, acenei e só via a minha mãe chorar.
O meu filho aguentou-se , acho que ainda não se tinha apercebido bem do que estava a acontecer. Sentaram-se à minha frente e, sucintamente contei-lhes o que se tinha passado, mostrando a minha indignação por tudo.
A minha mãe contou-me que o advogado lhe tinha dito que – eram só 3 meses – até submeter recurso para reavaliação dos pressupostos da prisão preventiva. Comentei – bom, no Natal estarei em casa … mas até lá que posso eu fazer? Nada? Mas como é possível alguém pensar que eu sou traficante de droga?
Eu sempre trabalhei que nem uma moira … mas será que as pessoas não disseram a verdade aos polícias? Não lhes disseram que nada tenho a ver com isto? – A minha mãe dizia – Ó filha, não sei, também não percebo nada … o que vamos fazer? Temos que aguardar -.
Comecei a falar com o meu filho, para o sossegar, para lhe dar um pouco de tranquilidade e quando isto, as guardas anunciaram, - Terminou a visita, minhas senhoras vamos a sair, os visitantes ficam sentados! – então!? não ouviram!? terminou a visita! -.
O meu coração batia pois nem queria acreditar que já tinha passado quase uma hora, que não deu para nada pois as saudades eram muitas, havia muito para falar e não era possível. A minha mãe à pressa ainda me disse que deixou um saco com roupa lavada, pijama, artigos de higiene de primeira necessidade, cartão para telefonar e tabaco. Despedi-me deles a muito custo e tive que sair.
(continua ...)
Acordei passadas poucas horas já com uns raios de sol a entrarem pelo
xadrez das grades e de repente ouvi aquela sirene estridente, que marcou todos os mais de 1500 dias que ali passei e que marcava a alvorada.
Não sabia se me havia de levantar ou ali ficar prostrada pois todas dormiam … era sábado. O som estrondoso das Guardas a abrirem os ferrolhos das portas das celas fêz-se ouvir com eco pelo Pavilhão inteiro juntamente com o chinelar de pés a correr não sabia eu para onde. As vozes, ouvia-as ao longe – ó colega, quem é a última? …. Eu sou a seguir …. Quem é a última?... A seguir sou eu …
A companheira do pijama, P … reparando que eu estava acordada, disse baixinho: - Nita, vou ao refeitório buscar o pequeno- almoço e vou marcar a vez para o telefone, queres vir? – respondi – Não, obrigada - ela insistiu – mas não queres falar para tua casa? – respondi – quero mas não tenho cartão – respondeu ela: - Eu empresto-te o meu, tem pouco mas dá para as duas. Arranja-te enquanto eu vou buscar o pequeno-almoço que eu marco a nossa vez para o telefone. Daqui a pouco começam as visitas … vais ter visita? – respondi: - não sei … e ela terminou dizendo – Despacha-te porque se não ficarmos no telefone à espera da vez vai haver merda.
Levantei-me. Parecia que tinha levado uma tareia tais eram as dores que tinha no corpo. A pressão, os nervos, o colchão de espuma que me colocou a dormir na tábua, a cabeça vazia, os olhos a arderem com as lágrimas a teimarem em correr sem fim, sem rumo … olhei-me no espelho e vi uma pessoa que não era eu … era a minha assombração.
A P … regressou com dois termos na mão, um saco plástico com pão e pousando tudo em cima da mesa, fazia-me gestos que traduzidos queriam dizer: come e despacha-te.
Bebi uma chávena de café e fomos para o telefone.
O telefone … sempre a mesma confusão. Note-se que é raro o dia em que não há cenas de pancadaria por causa do telefone.
Liguei para a minha mãe, vinham a caminho de Tires … já não via a minha mãe e o meu filho há 3 dias.
Voltámos para o quarto. As outras senhoras já estavam acordadas e começámos a arrumar e a limpar o interior daquele cubículo.
Sentia-me mal, pois estavam todas com olhos em cima de mim, …tiravam-me a vassoura da mão e diziam, ora uma ora outra – deixa lá que eu faço isso … anda, sai daí, eu lavo … não é assim que se faz …´
Ou seja, para elas eu não sabia fazer nada. Elas eram as mais limpas.
No princípio isto tudo incomodava-me mas depois tive que aprender a viver.
Logo, quando diziam – sai, não é assim, eu faço… - eu obedecia e deixáva-as na limpeza.
Tenho que vos passar esta imagem de limpeza geral, ao sábado, dentro de um pavilhão prisional.
Hoje penso que essa imagem tem tudo a ver com a cultura dos bairros.
Eu aprendi a limpar uma casa com a minha avó materna e com a minha mãe de uma forma que considero normal. Nunca na minha vida vi colocar as mobílias e os haveres fora de portas para fazer limpeza, mas está certo, também aprendi esta modalidade na prisão..
Imaginem isto num prédio …
Ali, o estardalhaço da limpeza era impressionante: tiravam tudo para fora da porta, para o corredor, sacos com roupas, cadeiras, mesas, chinelos, colchões … por vezes até os beliches. Depois atiravam-se baldes com água para dentro da cela e esfregava-se com a vassoura. Depois, de joelhos, o chão todo passado a pano.
É certo que este processo arcaico de limpeza, é higiénico num local destes mas é reflexo do que elas fazem nos seus bairros. Também colocam tudo na rua mas aí, em vez de sacos riscados dos chineses como resguardo de roupas, é o frigorífico último modelo, o micro-ondas, os sofás de padrões fortes, os écrans de televisão planos e portas escancaradas a verem-se os candeeiros faustosos de vidrinhos pendurados nos tectos.
Tudo isto para mostrar às vizinhas o nível de vida que conseguiram, na maioria dos casos, fruto do tráfico de droga e roubos vários.
A contracenar com este luxo, cá dentro ou nos seus bairros, está associada a imagem destas mulheres loiras platinadas com raiz preta de 1 centímetro, cabelos esticados tipo vassoura agarrados num puxo com uma mola no alto da cabeça, carregadas de ouro, unhas pintadas, pijama e bibe aos quadradinhos,justo, curto, e chinelos de enfiar o dedo.
Subitamente, as guardas começam histericamente aos gritos no microfone a desfilarem um rosário de nomes para a visita, que tinha lugar no refeitório do Pavilhão. Vim ao corredor para ouvir melhor o que dizim pois a dicção era péssima e vi as mulheres todas produzidas como se fossem para uma festa, com sacos plástico na mão com a roupa que mandam para casa para lavar. A excitação era mais que muita.
Passado um pouco ouvi chamar o meu nome e lá desci para o refeitório.
Uma guarda abriu a porta quando bati, e indicou-me um lugar para me sentar, dizendo –tu sentas-te deste lado e as visitas à tua frente. –
Enquanto esperei, olhei em redor do refeitório apinhado de pessoas, na maioria de etnia cigana, um barulho imenso de conversas cruzadas sobre polícias, droga, advogados e julgamentos.
Quando vi os meus pais, o meu filho, o meu irmão entrarem ia morrendo. Se alguma vez eu pensei, inadvertidamente que fosse, fazê-los passar por este sofrimento e humilhação! Os olhos da minha mãe procuravam-me no meio de toda a gente.
Levantei o braço, acenei e só via a minha mãe chorar.
O meu filho aguentou-se , acho que ainda não se tinha apercebido bem do que estava a acontecer. Sentaram-se à minha frente e, sucintamente contei-lhes o que se tinha passado, mostrando a minha indignação por tudo.
A minha mãe contou-me que o advogado lhe tinha dito que – eram só 3 meses – até submeter recurso para reavaliação dos pressupostos da prisão preventiva. Comentei – bom, no Natal estarei em casa … mas até lá que posso eu fazer? Nada? Mas como é possível alguém pensar que eu sou traficante de droga?
Eu sempre trabalhei que nem uma moira … mas será que as pessoas não disseram a verdade aos polícias? Não lhes disseram que nada tenho a ver com isto? – A minha mãe dizia – Ó filha, não sei, também não percebo nada … o que vamos fazer? Temos que aguardar -.
Comecei a falar com o meu filho, para o sossegar, para lhe dar um pouco de tranquilidade e quando isto, as guardas anunciaram, - Terminou a visita, minhas senhoras vamos a sair, os visitantes ficam sentados! – então!? não ouviram!? terminou a visita! -.
O meu coração batia pois nem queria acreditar que já tinha passado quase uma hora, que não deu para nada pois as saudades eram muitas, havia muito para falar e não era possível. A minha mãe à pressa ainda me disse que deixou um saco com roupa lavada, pijama, artigos de higiene de primeira necessidade, cartão para telefonar e tabaco. Despedi-me deles a muito custo e tive que sair.
(continua ...)